Internet não é terra sem
lei: #RacismoOnlineÉRacismo
por Intervozes
— publicado 01/12/2017 15h14, última modificação 01/12/2017
15h17
Diante dos inúmeros episódios de racismo no mundo virtual, qual o papel
da Justiça, das plataformas e da sociedade para combater de fato este crime?
Cecília Bizerra, Iara
Moura e Marina Pita*
“Não vai ficar impune”, disse Bruno
Gagliasso, ator global, na última segunda-feira (27) acerca das ofensas
racistas contra sua filha, Titi, feitas na Internet. Bruno, pai adotivo de uma
menina negra, prestou queixa contra Day McCarthy por injúria racial.
Em vídeo, McCarthy diversas vezes
deprecia a cor de pele negra, compara a criança a uma “macaca”, diz que ela
“tem um cabelo horrível de bico de palha” e classifica como ridículas as pessoas
que seguem o casal nas redes sociais.
O fato de Bruno ter ido à delegacia e a
mãe, Giovanna Ewbank, ter afirmado à imprensa que “racismo é crime e tomaremos
providências” são fundamentais por duas razões: para avançarmos no combate ao
racismo, que segue estruturante em nosso país, mas também para garantir a
existência de uma Internet aberta, diversa, plural e que respeite e promova os
direitos humanos.
Somente em 2016, a Central de Denúncias
coordenada pela ONG Safernet recebeu e processou cerca de 115 mil denúncias de
violações de direitos humanos online, envolvendo 39 mil páginas (URLs)
distintas. Destas, 35 mil tratavam-se de racismo. Neste contexto, é preocupante
que os casos de racismo na Internet se acumulem sem que haja uma punição
adequada, com a repercussão necessária para coibir novos episódios.
O que aconteceu, por exemplo, com a
denúncia de Maria Júlia Coutinho, nacionalmente conhecida por apresentar a
previsão do tempo no Jornal Nacional? Pouco se sabe. Em entrevista concedida
durante o Prêmio Raça Negra, no dia 15 de novembro, Maju afirmou: “existem leis
e espero que essas pessoas não fiquem impunes. Como a Taís denunciou [no início
do mês], eu também denunciei. E agora está correndo em segredo [de
Justiça]".
À época dos ataques contra a jornalista
na página do Jornal Nacional, a Globo perdeu a oportunidade de reafirmar a
existência, há 25 anos, da Lei 7.716, que define os crimes de preconceito
racial. A legislação determina, por exemplo, a pena de reclusão a quem tenha
cometido atos de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou
procedência nacional, independentemente de o crime ter sido cometido online ou
offline.
Entender que há desigualdades raciais
estruturais e estruturantes neste país é o primeiro passo para reconhecer o
problema. Disseminar esta informação e lutar para combatê-la são os passos seguintes.
Para isso, casos envolvendo pessoas famosas podem ser educativos e importantes
diante de um cenário de invisibilização e silenciamento de opressões e
violências praticadas contra o povo negro cotidianamente.
O oposto disso é a tentativa de
ridicularizar os depoimentos de quem se esforça para chamar a atenção para o
preconceito e resistir ao racismo. Incrivelmente, isso segue acontecendo, inclusive
por quem teria o dever de agir no sentido oposto.
Na última semana, o presidente da
empresa pública EBC (Empresa Brasil de Comunicação), Laerte Rimoli,
compartilhou em suas redes sociais imagens ironizando a recente declaração da
atriz negra Taís Araújo sobre racismo no Brasil. Tudo isso no mês da
Consciência Negra. O caso está sendo apurado pela Comissão de Ética da
Presidência da República. Mas quanto tempo pode levar esta decisão? E quão
exemplar ela deve ser para que não mais se repita?
Neste debate, vale refletir também a
diferença de tratamento e repercussão entre os casos Taís Araújo e Giovana e
Bruno, ambos envolvendo o preconceito sofrido por seus filhos. Rimoli – e tanto
outros – se sentiu à vontade para ridicularizar e diminuir a fala da atriz
negra. Teria o mesmo desprendimento ao se dirigir ao casal branco? O dedo que
aponta e classifica o brado de Taís como “vitimização” o faria no caso dos pais
de Titi?
A Internet, como qualquer outro espaço
da sociedade em que há difusão e troca de informações, tem um imenso potencial
para promover a igualdade num país tão diverso e plural como o Brasil, mas
também funciona como reprodutora da lógica racista da sociedade brasileira.
Aqui, o racismo se adapta e se reinventa cruel e rapidamente, existe em todos
os espaços da sociedade. Não seria diferente nas plataformas online.
Desse modo, é fundamental que a
legislação em vigor também seja aplicada neste meio, para que o preconceito
seja devidamente enfrentado à altura da frequência com que aparece na Internet
brasileira. Afinal, a Web não é uma terra sem lei. As leis vigentes se aplicam
também no mundo digital. E isso é algo que todos precisam compreender.
Vale lembrar que o Marco Civil da
Internet (Lei 12.965/2014), que estabelece, no Caput de seu Artigo 2º, que “a
disciplina no uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à
liberdade de expressão”, também determina as regras em que essa liberdade pode
ser limitada: em respeito aos “direitos humanos, o desenvolvimento da
personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais”. Ou seja, a
liberdade de expressão, no mundo offline e também online, está sujeita a
restrições para a garantia de demais direitos fundamentais.
É com pesar, portanto, que observamos
decisões judiciais envolvendo desrespeito a direitos autorais sendo tomadas com
maior agilidade e penas mais severas do que aquelas envolvendo crimes de
racismo e injúria racial.
Lembramos que o racismo institucional é
também estruturante no Poder Judiciário no país. O encarceramento em massa, que
atinge sobretudo a população negra, é demonstrativo disso. Segundo dados
divulgados este ano no Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias
(Infopen), o Brasil tem o 4º maior número de detentos no mundo, com mais de 622
mil presos, dos quais 60% são negros/as.
Daí a defesa de que não são necessários
novos tipos penais, mas sim que o Judiciário empregue os já existentes de
maneira a combater o racismo e outros crimes também para o que acontece na
Internet.
Por fim, uma sociedade não se constrói
apenas de leis e Justiça. Há autores para além do Estado que podem e têm muito
a contribuir para o combate ao racismo. As plataformas (empresas como o
Facebook e YouTube), por exemplo, podem avançar em transparência e apresentar
dados relativos a pedidos de retirada de conteúdo online envolvendo
manifestações racistas.
Estes dados seriam subsídios importantes
para o desenvolvimento de políticas públicas e para o acompanhamento e
incidência da sociedade civil nesta pauta, além de serem úteis para
pesquisadores/as envolvidos com o combate ao racismo e as demais violações de
direitos humanos.
Embora difundam esforços para o
desenvolvimento de ferramentas de combate a essas violações, as plataformas
online coíbem devidamenteum problema tão grave quanto o racismo? Existe a opção
“denuncie o racismo” em todas as plataformas? Afinal, se estamos falando e um
crime tipificado em lei, e se é tão recorrente, será que um botão como este não
faria pessoas como Day McCarthy pensarem duas vezes antes de publicar um vídeo
com discurso racista?
Foram inúmeros os episódios em que
usuárias tiveram seus perfis bloqueados por postarem seios nus, seja
amamentando, protestando politicamente ou divulgando uma produção artística.
Isso se dá de maneira rápida e eficaz, seguindo as “políticas internas” das
redes sociais. Enquanto isso, conteúdos machistas e racistas levam tempo para
serem removidos e com frequência voltam a circular e proliferar.
Larissa Santiago, da página Blogueiras
Negras, relatou no Fórum da Internet no Brasil, realizado em novembro último,
que a vivência recorrente de ataques coordenados, crimes e violências racistas
e machistas as levou a retirar a página oficial do grupo do Facebook. Como
relatou, as decisões judiciais que redundem em punição ao crime de racismo (não
apenas online) são escassas, além de muito lentas.
Qual afinal, então, a prioridade dos
nossos tempos? Se sobram ataques, onde estão as punições? Que novas práticas
nós, usuários/as da internet, mulheres, negros e negras, podemos exigir das
plataformas digitais para combater a violação de direitos humanos online? O que
cabe ao Estado?
Vale citar Angela Davis: “Em uma
sociedade racista, não basta não ser racista. É preciso ser antirracista”.
Pensar em soluções multisetoriais, que envolvam educadores, organizações da
sociedade civil, pesquisadores.
Como bem descreveu a coordenadora do
Intervozes, Ana Claudia Mielke, em artigo neste blog sobre o empoderamento da
população negra, acesso à internet e barreiras para universalizar a conexão no
país, há muitas oportunidades para promover a igualdade racial na Web. Mas
precisamos avançar para que esta ferramenta tecnológica esteja a serviço de
direitos.
“Recentemente na copa do mundo de 2018 o
jogador de futebol da seleção brasileira Fernandinho também foi alvo de
inúmeros insultos racistas por internautas inconformados com a eliminação do
time brasileiro.” (Prof.Angela)
* Cecília Bizerra Sousa é jornalista,
integrante do Intervozes, da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial do
Distrito Federal (Cojira-DF) e da Irmandade de Mulheres Negras Pretas
Candangas;Iara Moura é jornalista, integrante do Intervozes e Conselheira do
Conselho Nacional de Direitos Humanos; Marina Pita é jornalista, conselheira do
Intervozes e pesquisadora de temas relacionados a Internet, liberdade de
expressão e direitos humanos.
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